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A curiosa jornada legislativa que aparentemente alcançou consenso nacional
Por Gabriel Lucas Scardini de Barros
Nos últimos anos, poucos temas conseguiram unir a população brasileira. O país se viu dividido em polos opostos, com debates acalorados onde cada assunto ganhava duas versões antagônicas, inviabilizando discussões produtivas no parlamento. Este abismo na sociedade tem se refletido diretamente em nossos representantes políticos.
No entanto, ao final de 2024, testemunhamos um fenômeno raro: a proibição dos celulares nas escolas emergiu como um tema capaz de unir o Brasil, praticamente livre de amarras ideológicas. Tanto a direita quanto a esquerda concordaram que os aparelhos eletrônicos estavam prejudicando a educação.
Diversos estudos científicos comprovaram o que muitos educadores já observavam na prática: a utilização de celulares nas escolas compromete significativamente a atenção dos alunos, reduz a retenção de informações e prejudica os resultados educacionais como um todo. Um estudo da Universidade de Londres, por exemplo, mostrou queda de até 20% no desempenho de alunos com acesso constante aos aparelhos durante o período escolar.
Com a sanção da Lei nº 15.100, de 13 de janeiro de 2025, poderíamos pensar: assunto resolvido, correto? Não exatamente. A história por trás desta legislação revela aspectos surpreendentes tanto no processo estadual quanto federal que merecem nossa atenção.
O celular já era proibido nas escolas?
Curiosamente, a resposta é sim. Na segunda metade da década de 2000, quando compartilhar ideias entre estados era consideravelmente mais difícil sem as facilidades digitais atuais, diversas Assembleias Legislativas do Brasil já apresentavam propostas semelhantes sobre um tema específico: a proibição do uso de telefones celulares em ambiente escolar.
Vários estados já haviam aprovado leis nesse sentido, em uma época em que os smartphones ainda engatinhavam em popularidade e a preocupação era principalmente com as ligações e as primeiras mensagens de texto. São Paulo foi pioneiro com a Lei nº 12.730, de 11 de outubro de 2007, que estabelecia de forma simples:
Artigo 1º – Ficam os alunos proibidos de utilizar telefone celular nos estabelecimentos de ensino do Estado, durante o horário das aulas.
O que a recente Lei nº 18.058, de 5 de dezembro de 2024, fez foi modernizar essa legislação de 17 anos atrás, adaptando-a à realidade tecnológica atual. As principais mudanças incluem:
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Ampliação do escopo para abranger diversos dispositivos eletrônicos, não apenas celulares
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Estabelecimento da obrigatoriedade de as escolas fornecerem locais adequados para armazenamento dos aparelhos
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Criação de exceções importantes para uso pedagógico supervisionado
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Garantia de acesso para alunos com deficiências que dependem de aparelhos eletrônicos como ferramentas de acessibilidade
Esta evolução legislativa nos revela um fenômeno interessante: demorou mais de uma década e meia para que a lei realmente “pegasse” e fosse implementada de forma efetiva nas escolas brasileiras.
A lei federal teve aprovação rápida?
À primeira vista, após as alterações aprovadas em diversos estados (com destaque para São Paulo), parecia que a Lei Federal sobre o tema havia tramitado com impressionante rapidez no Congresso Nacional. A realidade, contudo, revela uma história diferente.
O que muitos não percebem é que as casas legislativas mantêm extensos acervos de propostas. Grande parte dos temas relevantes já foi objeto de alguma iniciativa legislativa, muitas vezes adormecida por anos em alguma comissão.
No caso da proibição de celulares nas escolas, a proposta federal inicial data de 2015 – quase uma década antes de sua aprovação final. Durante esse período, o projeto:
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Recebeu treze apensos (projetos semelhantes que foram unidos à proposta original)
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Permaneceu estacionado por 9 anos na Comissão de Educação da Câmara dos Deputados
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Foi revisitado apenas quando o tema ganhou relevância nacional
O que realmente ocorreu em 2024 foi uma aceleração notável do processo. Em questão de poucos meses, vimos a matéria receber parecer favorável da Comissão de Educação, aprovação da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e, finalmente, o aval do Senado Federal.
Este caso ilustra perfeitamente como o timing político pode determinar o destino de uma proposta: o mesmo texto que ficou quase uma década em análise foi rapidamente aprovado quando a opinião pública e o contexto social criaram o momento oportuno.
O que podemos aprender com essa unanimidade rara
Esta jornada legislativa sobre os celulares nas escolas nos revela aspectos importantes sobre como funcionam nossas instituições e nossa sociedade. Primeiro, demonstra que, quando o tema afeta diretamente o futuro educacional das próximas gerações, o Brasil ainda consegue superar suas profundas divisões políticas.
Segundo, evidencia como o processo legislativo frequentemente opera: ideias podem permanecer adormecidas por anos ou décadas, até que o momento social adequado as desperte. A lei de 2007 em São Paulo continha o princípio fundamental que só foi amplamente aceito 17 anos depois.
Enquanto escolas, educadores, famílias e estudantes se adaptam às novas regras, surge uma reflexão importante: será que outros temas fundamentais para nosso desenvolvimento como nação já estão presentes em alguma gaveta legislativa, apenas aguardando o momento certo para “pegarem”?
O caso dos celulares nas escolas nos dá esperança de que, mesmo em tempos de polarização, ainda existem valores compartilhados capazes de unir o país em torno de objetivos comuns. Talvez a chave esteja em identificar esses pontos de convergência e trabalhá-los com a mesma determinação que finalmente trouxe clareza a este tema educacional.
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